terça-feira, 24 de agosto de 2010

Uma posteridade branca e deleitosa: origens do casamento plural




A crença na origem israelita dos povos ameríndios e a prática do casamento plural são certamente duas características marcantes da experiência mórmon. Poucos estudiosos entre nós estão familiarizados, no entanto, com a conexão histórica existente entre as duas doutrinas; tampouco a influência do Livro de Mórmon na instituição do casamento plural parece ter sido avaliada com a devida consideração.
A primeira revelação conhecida a aludir à prática da poligamia (ainda que sem mencioná-la explicitamente) ordenava que um grupo de élderes em missão buscasse esposas indígenas para que sua descendência pudesse retornar a um estado de pureza e retidão, conforme havia sido profetizado no Livro de Mórmon. O casamento divinamente ordenado entre mórmons e índios seria o meio de tornar isso realidade.

No cabeçalho da seção 132 de Doutrina e Convênios, lê-se a afirmação de que “é evidente, pelos registros históricos, que as doutrinas e princípios envolvidos nesta revelação [de 1843, sobre o casamento celestial plural] eram do conhecimento do Profeta [Joseph Smith] desde 1831”. Embora durante o processo de tradução do Livro de Mórmon, Joseph Smith já tivesse se deparado com a questão da pluralidade de esposas [1] – o que antecederia para 1829 seu primeiro contato com tais “doutrinas e princípios”–, é significativa a menção de 1831, ano em que se vislumbram os primórdios do casamento plural mórmon. É nesse ano que Joseph e Emma vão para o estado de Ohio, onde Joseph conheceria a maior parte de suas futuras esposas plurais. É também de 1831 a revelação analisada a seguir.

Na região oeste do condado de Jackson, no Missouri, junto a um grupo de missionários que incluía Oliver Cowdery e William W. Phelps, Joseph Smith recebeu uma revelação em que Jesus Cristo os ordena a desposar mulheres dentre os indígenas. Uma vez que muitos dos missionários já eram casados, seguir o mandamento dado faria deles polígamos:

Em verdade, em verdade, diz o Senhor, vosso Redentor, o próprio Jesus Cristo, a luz e a vida do mundo que não podeis discernir com vossos olhos naturais, o desígnio e propósito de teu Senhor e teu Deus em trazê-los ao ermo, para uma prova de vossa fé – e para serdes testemunhas especiais para prestar testemunho desta terra, sobre a qual a Sião de Deus deverá ser construída nos últimos dias, quando for redimida.(...)

Em verdade vos digo que a sabedoria do homem, em seu estado decaído, não conhece os propósitos e privilégios do meu santo sacerdócio, mas vós sabereis quando receberdes uma plenitude em razão da unção; pois é minha vontade que, em tempo, deveis tomar para vós esposas dentre os lamanitas e nefitas, para que sua posteridade possa tornar-se branca, deleitosa e justa, pois mesmo agora suas mulheres são mais virtuosas do que as gentias. [2]


Embora não se saiba quantos naquele momento de fato tentaram seguir a admoestação divina ou que sucesso obtiveram, esta constitui a primeira revelação moderna de que se tem registro em que a pluralidade de esposas está presente. É interessante que antecedendo o mandamento de unir pelo matrimônio mórmons e indígenas haja a referência inicial à futura cidade de Sião, já que de acordo com desenvolvimentos doutrinários posteriores, a Nova Jerusalém seria construída conjuntamente pelos santos dos últimos dias e os lamanitas. [3] Afinal, os indígenas são vistos como indivíduos “mais virtuosos” do que os norte-americanos brancos, sendo a posteridade de antepassados hebreus que haviam colonizado o continente.

O mandamento de desposar as mulheres “lamanitas e nefitas” é exposto como um dos “privilégios do meu santo sacerdócio”, ainda não compreendidos pela Igreja. A ideia do casamento plural como um privilégio ou lei terá eco por toda a história da prática. [4] O entendimento futuro sobre tal lei viria de uma “plenitude da unção”, sugerindo novamente que a compreensão dos santos sobre o sacerdócio era ainda incompleto. Uma década depois, começaria a se desenvolver de forma explícita o conceito de que o casamento plural é um dos elementos que constituem a plenitude do evangelho. [5]

O propósito da união com as mulheres indígenas, de acordo com o texto da revelação é que “sua posteridade possa tornar-se branca, deleitosa e justa”. Aqui surge claramente um eco do Livro de Mórmon, em que a profecia sobre a futura restauração da casa de Israel a seu antigo status e relacionamento com Deus inclui a descendência dos antigos habitantes das Américas:

E então os remanescentes de nossa semente terão conhecimento de nós (...).

E o evangelho de Jesus Cristo será proclamado a eles; portanto o conhecimento sobre seus pais lhes será restituído, como também o conhecimento sobre Jesus Cristo, que seus pais possuíam.

E aí se regozijarão; (...) e antes que se passem muitas gerações, tornar-se-ão um povo branco e agradável. [6]


Essa transformação da aparência física dos lamanitas ocorre em dado momento da narrativa do Livro de Mórmon, quando a sua conversão os leva a se unirem aos nefitas. Como resultado dessa união, “seus filhos e filhas tornaram-se sumamente belos”, uma afirmação que parece sugerir que a união entre lamanitas convertidos e nefitas incluía o matrimônio entre as duas linhagens:

E acontecei que os lamanitas que se haviam unido aos nefitas foram contados com os nefitas;

E a maldição foi retirada deles e sua pele tornou-se branca como a dos nefitas;

E seus filhos e filhas tornaram-se sumamente belos e foram contados com os nefitas. (...) [7]


Ao ordenar que missionários brancos desposassem mulheres descendentes dos antigos lamanitas e nefitas, a revelação de 1831 não apenas retoma a profecia de que sua posteridade seria novamente “branca e deleitosa”, mas coloca o meio para que isso viesse a acontecer, assim como narrado no Livro de Mórmon. A revelação, por algum motivo, não foi publicada em Doutrina e Convênios ou nos periódicos da época, de forma que nunca se tornou de amplo conhecimento dos membros ou sequer das autoridades gerais. O texto da revelação que chegou até nós é parte de uma carta endereçada a Brigham Young, escrita por William W. Phelps, participante daquela missão, trinta anos depois do acontecimento. Tendo tomado conhecimento da doutrina exposta na revelação através da carta de Phelps ou em outro momento anterior, o fato é que as doutrinas ensinadas por Brigham Young no oeste, bem como suas ações para com os índios do território, sugerem que ele também acreditava nos mesmos princípios de trazer uma posteridade “branca e deleitosa” para os indígenas.

A seguinte observação de T. B. H. Stenhouse, em seu livro de 1873, mesmo que repleta de ironia, parece ser verossímil sobre a aplicação do mesmo princípio exposto na revelação de 1831, décadas depois, por parte do apóstolo Heber C. Kimball no proselitismo entre os indígenas do oeste:

Ele [Brigham Young] enviou certa vez uma missão para Fort Linahi, Salmon River. (...) Quando Brigham e Heber depois visitaram os missionários para ver que sucesso estavam tendo, Heber, em seu estilo peculiar, lhes disse que não via como as predições modernas poderiam ser cumpridas sobre os índios se tornarem “um povo branco e deleitoso” sem estender a poligamia aos nativos. A chegada do exército dos Estados Unidos, em 1857, contribuiu para acabar com aquela missão, mas não antes da sugestão de Heber ter sido claramente compreendida e a profecia meio cumprida! Heber era muito prático e acreditava que as pessoas nunca deveriam pedir “ao Senhor” para fazer por elas aquilo que poderiam fazer por si mesmas e, uma vez que toda Israel estivera orando para que os índios se tornassem prontamente um “povo branco e deleitoso", ele pensava ser dever dos missionários auxiliar “o Senhor” a cumprir suas promessas. (…) Mais de um missionário parece tê-lo entendido perfeitamente! [8]


Pela revelação de 1831, percebe-se que um importante elemento do Livro de Mórmon estava relacionado ao início da história do casamento plural. O fato pode ser surpreendente para os que, numa leitura rápida, se acostumaram a ver na narrativa de Jacó uma condenação da poligamia. A necessidade que sentiam os pioneiros de cumprir a profecia do registro nefita e agir pela salvação da posteridade de Leí, para que voltasse a ser “branca, deleitosa e justa”, lançava os fundamentos do que ainda viria a ser um dos fundamento da religião dos santos dos últimos dias, o casamento plural.

A doutrina sobre o selamento ou a eternidade do matrimônio ainda estava muito longe de ser revelada ou desenvolvida; o texto da revelação, porém, aponta para um tempo futuro em que seria revelada uma “plenitude” e os “privilégios do sacerdócio” seriam ensinados e vividos. O entendimento histórico da revelação aqui analisada mostra como a doutrina do casamento plural já era vislumbrada no início da Igreja de modo muito mais concreto do que se imaginava.


NOTAS

[1] Em Jacó 2:22-35, a prática desautorizada do casamento plural é condenada. É feita a afirmação, porém, de que “se eu [o Senhor] quiser suscitar posteridade para mim, (...) ordenarei isso ao meu povo” (versículo 30).

[2] Revelação dada por intermédio de Joseph Smith, no Condado de Jackson, Missouri, em 17 de julho de 1831. Relatada por William W. Phelps em carta a Brigham Young, em 12 de agosto de 1861. Collier, Fred. Unpublished revelations, 10:4, p.58. Leia aqui o texto completo da revelação em português.

[3] Em algumas afirmações, os lamanitas são os principais responsáveis pela construção de Sião, enquanto os efraimitas brancos têm um papel coadjuvante. Ver, por exemplo, Orson Pratt, Journal of Discourses 9:178, em julho de 1855: “Acredito com todo meu coração (…) que este povo será nosso escudo em dias futuros. (…) Vocês não sabem que (..) aqueles que abraçam o Evangelho dentre os gentios terão o privilégio de ajudar os lamanitas a construir a cidade chamada de Nova Jerusalém?”.

Falecido recentemente, o ex-setenta autoridade geral George P. Lee, de origem navajo, questionava a hierarquia sud no que se referia ao abandono desta e de outras doutrinas relativas aos indígenas.

[4] D&C 132:58,64 fala da pluralidade de esposas como “a lei de meu sacerdócio”. O uso da palavra “privilégios” também é comum entre os relatos dos primeiros poligamistas mórmons para se referirem à prática.

[5] D&C 132:6: "E quanto ao novo e eterno convênio, foi instituído para a plenitude de minha bglória; e aquele que recebe sua plenitude deve cumprir a lei e cumpri-la-á; caso contrário, será condenado, diz o Senhor Deus".

[6] 2 Néfi 30:4-6. Já antes de 1978, a edição sud do Livro de Mórmon havia mudado “branco e agradável” para “puro e agradável”, como consta na edição atual. Várias outras referências à pele clara ou escura de nefitas e lamanitas permaneceram, dada a importância destas na narrativa.

[7] 3 Néfi 2:14-16.

[8] The Rocky Mountain saints, p. 657-659.

2 comments:

Anônimo disse...

Racismo idiota e inacreditável...

Antônio Trevisan Teixeira disse...

Ainda bem que li seu comentário, muito bem embasado, que lança uma nova perspectiva sobre o tema. Obrigado :)

Apenas tenha em mente de que se trata de um artigo sobre história.

Postar um comentário