O mormonismo é uma tradição espiritual marcada por duas grandes tendências: o misticismo e a ortodoxia. Das revelações e outras experiências sobrenaturais de Joseph Smith até a formação de uma rígida estrutura que governa a Igreja em escala mundial, houve um longo caminho a ser percorrido, ao longo do qual a ênfase original na revelação direta e a responsabilidade individual de cada membro por sua orientação espiritual foi sendo relativizada. Ainda que não sejam palavras ou conceitos comumente usados entre os santos dos últimos dias, misticismo e ortodoxia estão presentes na história mórmon mais do que se poderia imaginar. Neste breve artigo, tentarei esboçar como essas duas tendências se manifestaram e manifestam na Igreja sud.
Uma religião mística e familiar
Joseph Smith nasceu em uma família marcada pela busca espiritual. Experiências místicas de seu pai e avô paterno, por exemplo, são alguns dos elementos que compõe o cenário em que se forma o profeta Joseph. A natureza mística original do mormonismo está portanto fortemente ligada à família Smith. “Antes de ser uma organização, o mormonismo era um despertar religioso particular em uma única família”, afirma D. Michael Quinn. [1] Marcado por esse ambiente, Joseph relatou durante sua vida ter diversas experiências espirituais, iniciando com a visitação recebida de Deus e Jesus Cristo durante sua adolescência, passando pela ministração de antigos profetas ressuscitados e o recebimento de diversas revelações divinas. Dessa forma, não seria exagero afirmar que o mormonismo constitui uma tradição religiosa fundamentada na experiência mística.
Um místico é uma pessoa que reconhece a realidade do mundo spiritual e comunga com ele. É uma pessoa que busca Sabedoria, Conhecimento, Poder e Favor de Seres espirituais. Esta é a própria essência do misticismo (…) [2]
Pela definição acima, aquilo que distingue o misticismo de outras expressões de religiosidade é a comunicação direta que o indivíduo estabelece ou tenta estabelecer com os seres divinos. Seu entendimento, portanto, transcende aquele obtido pela leitura dos textos sagrados porque provém de uma experiência direta. Sua comunicação com a deidade e seus mensageiros é o que o une ou re-une ao mundo celeste, cumprindo assim o significado literal da palavra religião: re-ligar.
Em Joseph Smith há uma ênfase na experiência espiritual de cada indivíduo, o qual não deveria depender da experiência alheia:
Ler a experiência dos outros ou as revelações dadas a eles, nunca pode nos dar uma visão ampla de nossa condição e verdadeira relação com Deus. O conhecimento dessas coisas só pode ser obtido pela experiência nessas coisas, através da ordenança de Deus estabelecida para este sentido. [3]
Joseph e sua luta contra a ortodoxia
Os ensinamentos de Joseph Smith se colocam em oposição à tradição protestante e a maior parte do cristianismo. Em sua visão mística, não havia espaço para o formalismo, a rigidez e um conjunto imutável de verdades. A verdade era vista por ele como eterna e infinita, não passível de ser confinada a um credo.
Questionado sobre as diferenças entre "os santos [dos últimos dias] e os sectários" (membros das diferentes denominações cristãs), Joseph Smith explicou que os últimos eram
todos circunscritos por algum credo peculiar, que privava seus membros do privilégio de acreditar em algo que não estivesse contido nele, enquanto os Santos dos Últimos Dias não têm um credo, mas estão prontos para acreditarem em todos os princípios verdadeiros que existem, à medida que são manifestos de tempos em tempos. [4]
A experiência espiritual direta é, assim, o extremo oposto da ortodoxia, cuja doutrina pode ser limitada a um conjunto finito de crenças. Muitos leitores talvez identifiquem as Regras de Fé como um credo mórmon. É importante aqui lembrar que elas não englobam a totalidade de crenças do evangelho restaurado e nem sequer foram originalmente escritas para os membros da Igreja, mas escritas por Joseph Smith como uma exposição das suas crenças aos leitores “gentios” de um jornal norte-americano. As Regras de Fé foram apenas canonizadas como escritura em 1890, na mesma conferência que propôs o Manifesto. Joseph nunca propôs um credo; ao contrário, ensinou sobre a necessidade de buscar constantemente a verdade, ao invés de cercá-la com um muro.
Lendo os ensinamentos de Joseph conforme registrados por ele e seus contemporâneos, pode-se ver claramente a evolução de seu pensamento. Joseph não permaneceu um “ortodoxo” em sua própria teologia, mas aprendeu e ampliou sua visão. A Igreja de Cristo formada em 1830 em Palmyra possuía doutrinas e organização totalmente diferentes da Igreja deixada por Joseph em 1844 em Nauvoo. Grande arte desse processo pode ser entendido como fruto das experiências que Joseph ao longo dos anos, incluindo obviamente suas experiências místicas que o levaram a conceber Deus como um homem exaltado e tantas outras doutrinas que chocaram (e ainda chocam) a cristandade e - não podemos omitir esta constatação - chocaram (e ainda chocam) muitos santos dos últimos dias. Joseph ilustra o homem descrito por Heráclito que não podia entrar duas vezes no rio: ele mudava a cada vez, assim como as águas que o recebiam.
Para Joseph, revelação divina e ortodoxia não podiam ocupar o mesmo espaço. Em referência ao drama que era encenado nos templos mórmons, Janice Allred explica como a ortodoxia era retratada como um substituto satânico à obtenção de revelação divina:
Pregas a religião ortodoxa? É uma pergunta de Satanás. A religião ortodoxa é o que ele oferece a Adão e Eva como um substituto para o que eles estão buscando. [5]
Uma ortodoxia mórmon
Essa percepção mórmon original sofreu uma forte transformação, à medida em que a Igreja construiu sua própria ortodoxia. Distante da liderança carismática de Joseph Smith, a Igreja sofreu ao longo do tempo mudanças cada vez maiores em sua hierarquia, a qual se passou a se assemelhar a uma burocracia, bem como mudanças doutrinárias, as quais tornaram a Igreja mais semelhante às denominações protestantes, sob a constante assimilação da Igreja pela cultura norte-americana. Pronunciamentos contendo a frase “Assim diz o Senhor” foram diminuindo até saírem de cena.
Um dos mais influentes apóstolos da Igreja SUD no século XX, Bruce R. McConkie, afirmou a necessidade de um pensamento ortodoxo entre seus membros:
No sentido verdadeiro, ortodoxia consiste em acreditar naquilo que está em harmonia com as escrituras. Portanto, a ortodoxia do evangelho requer a crença nas verdades que hão sido reveladas nesta dispensação através de Joseph Smith, e como são compreendidas e interpretadas pelos oráculos vivos que possuem o manto do Profeta.[6]
Ao mesmo tempo em que McConkie coloca as verdades reveladas através de Joseph Smith como um parâmetro de crenças corretas, ele acaba por limitar tais crenças à formulação contemporânea que recebem dos líderes eclesiásticos atuais, expressando o entendimento de que, como coloca Allred, a “ortodoxia no final depende de autoridade ao invés de verdade”.
Reescrevendo o passado
Característico dessa ortodoxia é a tentativa de reconstruir o passado, reescrevendo passagens da história mórmon hoje consideradas embaraçosas para os padrões contemporâneos sud, algo que tem sido refletido na história oficial da Igreja e suas publicações. Durante uma conferência geral de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, em outubro de 2006, o apóstolo Boyd K. Packer mencionou a história da Igreja nos seguintes termos:
Não precisamos nos desculpar pela história da Igreja. Tomem, defendam a história da Igreja e o evangelho de Jesus Cristo(...).
A transcrição de seu discurso, no entanto, é lida da seguinte forma:
Defendam com firmeza a história da Igreja e não se envergonhem do evangelho de Jesus Cristo.[7]
A prática de editar discursos após conferências gerais não é nova. Esta mudança no discurso do Élder Packer, no entanto, é particularmente interessante pela supressão da frase “Não precisamos nos desculpar pela história da Igreja”, a qual é, na versão editada, transformada numa referência bíblica de não se envergonhar pelo evangelho. Tal ação sugere que, para os que editaram o discurso, a referência a não se desculpar pela história poderia instigar os membros a se perguntar quais seriam os fatos pelos quais surgiria a “tentação” de se desculpar.
Um misticismo sobrevivente?
Haverá ainda espaço para o misticismo em meio à ortodoxia vigente na Igreja SUD atual? Embora a doutrina e as práticas da Igreja contemporânea estejam marcadas pela ortodoxia, há que se reconhecer que ainda existe em algumas situações certa ênfase na experiência espiritual direta como, por exemplo, no incentivo que não-membros recebem de missionários para orar e descobrir a veracidade da mensagem que ouvem; no relato da Primeira Visão, tão enfatizado na obra missionária; também o templo oferece aos membros introspecção e simbolismo que incentivam a experiência mística.
Também é interessante notar o interesse de muitos membros por relatos não-oficiais de supostas experiências sobrenaturais como a famosa história dos “passarinhos verdes”, disseminada em anos recentes pela internet e referida em discursos em muitas capelas ao redor do mundo. Tal interesse talvez constitua uma tentativa de compensar a relativa falta de misticismo na estrutura oficial da Igreja, em contraste com o misticismo que se encontra nas origens da experiência mórmon. O mesmo poderia ser a motivação subjacente para o interesse em ufologia, teorias sobre intraterrenos e outras formas alternativas de pensamento que flertam com o sobrenatural.
Misticismo e ortodoxia ainda permanecem em uma relação dinâmica e conflituosa dentro da Igreja SUD. Ainda que o apelo de saber a verdade por si, através de Espírito Santo, seja a porta a de entrada para muitos conversos à Igreja, a existência de uma ortodoxia que se manifesta em crenças e doutrinas e se perpetua através de uma forte e inatingível hierarquia marca com cores fortes o mormonismo atual sud, relegando a experiência mística a um plano muito individual e discreto dentro da experiência religiosa de cada membro. Talvez seja apenas na sutil e sincera busca individual que o misticismo que esteve na origem da restauração do evangelho possa ainda ser sentido e experimentado.
REFERÊNCIAS
[1] QUINN, D. Michael. The Mormon hierarchy: origins of power. Salt Lake: Signature, 1994. p. 1.
[2] COLLIER, Fred C. The trinity. Salt Lake: Collier Publishing, 1997?, p. 01.
[3] EHAT, Andrew F. The Words of Joseph Smith p. 252
[4] SMITH, Joseph. History of the Church vol. 5, p. 215
[5] ALLRED, Janice. Do You Preach The Orthodox Religion? A Place For Theology In Mormon Community. Sunstone 15:2/23 (Jun 91)
[6] McCONKIE, Bruce R., Mormon Doctrine (Salt Lake City: Bookcraft, 1966), 550.
[7] http://www.lds.org/conference/talk/display/0,5232,49-1-646-31,00.html
2 comments:
Um dos melhores textos que já li no blog. Quando lemos os ensinamentos de Joseph percebemos esse desenvolvimento gradual da teologia mórmon. Infelizmente a Igreja se transformou numa estrutura engessada e burocrática.
Leonel,
há uma forte burocratização, concordo. No entanto, há que se distinguir entre a Igreja e o evangelho. Como tento sugerir no final do post, a ênfase na busca espiritual é o próprio fundamento do evangelho e a porta de entrada para muitos, em especial conversos. É difícil, se não impossíovel apagar isso e ter algum apelo como religião. Dessa forma, há uma contradição entre a estrutura presente da Igreja e parte dos seus ensinamentos, porque ao mesmo tempo que temos uma ênfase em "sigam os manuais" e "sigam os líderes", o princípio de orar, ponderar e obter revelação pessoal ainda é ensinado, embora a tendência é de não aplicar tais princípios à doutrina oficial ou à liderança.
"Arquivo",
é interessante notar que a maior parte da retórica anti-mórmon é hoje baseada em fatos históricos que são ou desconhecidos ou neglicenciados pela maioria dos membros. Este é um dos motivos pelos quais acredito também que o estudo da história deveria merecer mais nossa atenção. Quando se oculta a história, se faz um grande, grande mal. "Quem controla o passado, controla o presente".
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