Pouco parece ter sido explorado na história mórmon sobre a percepção que a hierarquia SUD teve do movimento dissidente de Strang. Duas revelações que não fazem parte do cânon de escrituras mórmons podem nos ajudar nesse entendimento. Neste artigo, apresento pela primeira vez em língua portuguesa estas duas revelações pouco conhecidas e tento destacar algumas das afirmações feitas dentro do seu universo discursivo.
Em James Strang e as testemunhas do Livro de Mórmon (partes 1 e 2), Flauber Barros esboçou um panorama desse movimento surgido após o assassinato de Joseph e Hyrum Smith e a conseqüente crise sobre a sucessão na Igreja. Ainda que minoritário desde o princípio, o movimento de Strang foi capaz de atrair personagens importantes da história mórmon, mesmo que a liderança reivindicada por ele não remetesse a nenhum dos prováveis princípios pelos quais o profeta Joseph poderia ser sucedido. O carisma pessoal de Strang e seus relatos sobre acontecimentos sobrenaturais ou proféticos devem ter pesado na influência exercida sobre seus seguidores e simpatizantes.
O impacto de Strang sobre a unidade da Igreja SUD talvez possa ser melhor dimensionado pela leitura de duas revelações recebidas a seu respeito por apóstolos da Igreja em 1846, em Nauvoo, reproduzidas a seguir. A primeira delas, recebida por Brigham Young diretamente para Reuben Miller, nunca foi publicada pela Igreja e é traduzida aqui integralmente; já a segunda, recebida por Orson Hyde, foi publicada no periódico Millenial Star e, devido à sua maior extensão, não está traduzida em sua totalidade.
Revelação recebida por Brigham Young para Reuben Miller em 30 de janeiro de 1846 em Nauvoo, Illinois.
Assim diz o Senhor a Reuben Miller através de Brigham Young – que Strang é um homem iníquo e corrupto e suas revelações são tão falsas quanto ele. Portanto, desvia-te da sua tolice – e nunca seja dito de Reuben Miller que ele já foi desviado e apanhado por tal disparate.[1]
O texto da revelação acima constrói um paralelo entre o indivíduo Strang e suas supostas revelações: uma vez que Strang é “iníquo e corrupto”, suas revelações são igualmente “falsas”, como uma expressão de seu próprio caráter. Sua liderança é classificada então em termos que remetem a um absurdo: “tolice” e “disparate”.
Revelação dada através de Orson Hyde em abril de 1846, em Nauvoo, Illinois.
Em minhas meditações nesta manhã, o Espírito do Senhor veio sobre mim e fui levado a escrever; estando pesaroso no meu espírito devido a falsas pretensões, por pessoas que almejam o mal, de ganhar poder e desviar o rebanho de Deus, sussurrou a mim e disse:
Homens maus, ambiciosos de poder, devem surgir entre vocês, e eles deverão ser levados pela sua própria vontade e não por mim. No entanto, eles são instrumentos em minhas mãos e lhes é permitido tentar meu povo e colher dentre eles aqueles que não são os eleitos, e aqueles que são indignos de vida eterna.
Não esteja pesaroso, nem de luto, nem seja alarmado. Meu povo conhece a minha voz e também a voz de meu espírito, e um estranho não seguirão; portanto, aqueles que seguem estranhos não são meu povo.
Eis que James J. Strang amaldiçoou meu povo por seu próprio espírito e não pelo meu.
Nunca em qualquer momento apontei aquele homem iníquo para liderar meu povo, nem pela minha própria voz, nem pela voz de meu servo Joseph Smith, nem pela voz de meu anjo: mas ele tentou enganar e Satanás o ajudou:
Mas antes do passado foi ele o ordenado para reunir o joio do campo e meus anjos o escolheram para fazê-lo porque ele era um homem iníquo, assim como Judas foi escolhido para trair seu Senhor. (...)
Que o homem que coloca sua confiança em mim não se perturbe sobre os seus direitos.
Os dignos terão seus direitos e nenhum poder pode evitá-lo, pois eu lhes darei os corações do meu povo, e sua voz é minha voz, assim como minha voz é a voz de meu pai; e o que ligarem na terra, eu ligarei no céu.
Mas os indignos não têm direitos a não ser esses: arrependimento ou condenação. [2]
A revelação recebida pelo apóstolo Orson Hyde chama a atenção pelo fato de nela a voz do Senhor falar em Strang como um dos “instrumentos” para reunir “aqueles que não são os eleitos”, “o joio do campo”, um papel para o qual Strang teria sido “ordenado” a cumprir, “assim como Judas foi escolhido para trair seu Senhor”, sugerindo uma pré-ordenação anterior à mortalidade. Enquanto a “tolice” e “disparate” mencionados na revelação a Reuben Miller sugerem que Strang poderia estar simplesmente mentindo ou fora de si, a revelação publicada no Millenial Star diz que Strang “tentou enganar e Satanás o ajudou”, apontando para a possibilidade de que os eventos sobrenaturais narrados por Strang tivessem sido produzidos por influência satânica.
Uma mensagem de conforto também caracteriza a revelação, com o Senhor falando a Orson para não se sentir “pesaroso, nem de luto, nem [ser] alarmado”. No contexto de confusão e disputa de liderança, os “direitos” dos apóstolos liderarem aquele processo de transição lhes é assegurado, à medida que “os corações do meu povo” são colocados em harmonia com aqueles que devem liderar. No final, a habilidade de reconhecer a liderança investida de autoridade divina repousa na identidade ou origem espiritual de cada indivíduo, remetendo à alegoria bíblica de que a voz do pastor é reconhecida apenas pelo rebanho que de fato lhe pertence: “meu povo conhece a minha voz e também a voz de meu espírito”. Haveria também aqui uma alusão ao evento conhecido com a transfiguração de Brigham Young, quando alguns santos disseram ter testemunhado Brigham Young falar com a voz do profeta assassinado?
A disputa pelo manto profético de Joseph Smith não poderia dispensar uma realidade espiritual reivindicada por cada um dos pólos envolvidos. Numa perspectiva histórica, as revelações recebidas por Brigham Young e Orson Hyde expressam uma continuidade do exercício de dons proféticos em que estava baseado o movimento iniciado por Joseph Smith. Publicada no jornal da Igreja, a revelação dada por intermédio de Orson Hyde transmitia ao santos que se mantiveram sob a liderança dos Doze a confirmação de que estavam do lado correto. Diante de todo o esforço e pressa para completar o templo de Nauvoo antes do êxodo para as Montanhas Rochosas, também lhes é assegurado um reconhecimento das ordenanças realizadas, almejando um efeito eterno: “o que ligarem na terra, eu ligarei no céu”.
NOTAS
[1] Lieut. Gen. Brigham Young Journal, 31 de janeiro de 1846, manuscrito no acervo da biblioteca da Universidade de Utah. Collier, Fred. Unpublished revelations. p. 104.
[2] Millenial Star, VII, no 10, May 15, 1846, p 157-158. Collier, Fred. Unpublished revelations. p. 104-105.
9 comments:
Caro Trevisan
Você se mostrou nesse post um verdadeiro apologista mormon o que não senti em outos post passados, Strang podia com certeza ter sentimentos egoistas de poder porém sabemos que muitos que o seguiram tinham outras razões para não seguir Brigham Young que a vista da história eram razoáveis e compreensiveis. Me desculpe mais o teor das revelações trasmitem um sentimento cruel e injusto bem caracteristicos dos sentimentos que deveria haver nesse tempo de crise dos dois lados para aqueles que não quisessem apoiá-los e a história nos mostra que os líderes sempre estiveram dispostos a tudo para valer suas posições inclusive por palavras na boca de Deus como apoio dessas posições. Siceramente não me senti bem nos termos das revelações parece-me mais sentimentos pessoais dos autores.Você sabe porque não foram incluidas em D&C, elas dariam uma força entanto na posição da igreja.
"Você sabe porque não foram incluidas em D&C, elas dariam uma força e tanto na posição da igreja."
No caso da revelação escrita por Orson Hyde, o simples fato dela ter sido escrita por um apóstolo que não ascendeu à posição de presidente da Igreja já seria provavelmente suficiente para que não fosse publicada em D&C. Todas as seções de D&C e as declarações oficiais foram recebidas/dadas por presidentes da Igreja.
Em periódicos e diários, há muitas revelações que não foram e jamais serão canonizadas, incluídas no cânon. Seja pelo mesmo motivo da posição hierárquica do seu receptor, seja pelos princípios doutrinários que expõe. Tanto John Taylor quanto Wilford Woodruff receberam revelações divinas quando presidentes da Igreja. Nada foi e jamais será incluído em D&C. Por quê? Porque as revelações em questão afirmam a necessidade de que o casamento plural continue, como uma lei eterna.
Quando o filho de John Taylor, após ter sido desobrgado do Quórum dos Doze, é levado a julgamento pela prática da poligamia, ele apresenta a revelação recebida por seu pai sobre o assunto e os Doze questionam a validade da revelação por ela não ter sido submetida à aprovação deles.
No caso da revelação recebida por Brigham, ela "cairia bem" uma vez que Brigham se tornou anos depois presidente da Igreja. Mas para contextualizar a revealçao, seria necessária toda uma explicação sobre quem foi Strang, sobre a crise de sucessão, etc.. Geralmente os membros da Igreja sud estão apenas familiarizados que existe a antiga igreja reorganizada e os "poligamistas".
Outra razão é que a revelação não foi de conhecimento público e talvez não tenha sequer sido mostrada aos Doze.
Anônimo,
o que tornaria meu post apologético? O simples fato de escrever a respeito da percepção dos líderes em Nauvoo sobre Strang? Ou a minha análise das revelações em si? Seriam os textos do Flauber uma apologia do movimento de Strang? Claro que não. Por que meu texto seria então considerado apologético?
Como afirmou no início do texto, a minha intenção era destacar algumas afirmações contidas nessas revelações "dentro do seu universo discursivo". Ou seja, dentro do universo de crenças e ideias que Orson e Brigham compartilhavam com os santos.
Não fiz um juízo de valor sobre serem corretas, verdadeiras, autênticas, expressões da vaidade humana ou vontade divina. Como estou escrevendo sobre história, estou usando ferramentas e fontes que não nos mostram uma coisa ou outra. "As coisas espirituais só podem ser discernidas com olhos espirituais." Não é esse necessariamente o objetivo da história. Deixo ao leitor - caso deseje - fazer algum julgamento desse valor. Como você fez.
Eu não sou o maior fã de Brigham Young, mas o que me fascina nele é justamente essa clareza tão grande de que ele é um homem de carne, osso e sangue. Mesmo o vendo, na minha percepção, como um profeta ele é tão cheio de paixões humanas que é quase impossível acreditar por um segundo em infabilidade ou perfeição, mitos que se cristalizaram na cultura sud, infelizmente. Claro que Brigham não estava cercado por um sistema de relações públicas que impedia de ele ser visto como homem. Ele tampouco tinha papas na língua ou era um homem "moderado" em suas ações.
Este blog já foi chamado de anti-mórmon por pessoas desinformadas. A estas alturas, se meu post for chamado de apologético não vou ficar mais surpreso. ;]
Caro Trevisan
Não tive ao intenção de ofendê-lo ou de ser injusto, apenas expressei a percepção pessoal que tive do texto, mas claro que essa percepção pode estar equivocada.
É que parece que sempre que havia uma ameaça a liderança uma revelação conveniente aparecia para resolver a questão em quanto sobre muitas questões que até hoje são polêmicas nunca apareceram revelações para resolve-las.
Enviei um email para você e o Flauber sobre uma questão particular e pessoal esperei por uma resposta mais ela ainda não veio, ainda gostaria se for possível ter um parecer seu ou do Flauber serei grato por isso.
meu email: madaleudo@oi.com.br em 03/08/2010
Olá anônimo, acabei de encontrar seu e-mail na minha caixa postal e já respondi.
Abraços
Olá, anônimo,
não me senti ofendido de forma alguma e espero não ter soado rude na minha resposta.
Abraços!
Caro Trevisan
Como posso acessar os posts antigos apesar de ter os links eles são dirigidos para posts recentes.
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